O Homem de Areia - E.T.A. Hoffman
Mexendo em alguns livros aqui em casa, eu achei um conto clássico e, muito interessante, O Homem de Areia de Hoffman. Ele traz consigo elementos intrigantes do fantástico e do sobrenatural, além de nos dizer muito sobre coisas da interioridade individual e a respeito da simbologia coletiva.
O ponto base para o conto é acreditar ou não naquilo que se vê: aparições, sonhos, demônios e tantos outros seres que povoam o nosso inconsciente...
Para quem se dispor a ler, espero que goste.
Para quem se dispor a ler, espero que goste.
Natanael a Lotar
Sem
dúvida, estão todos preocupados por não lhes ter escrito durante tanto
tempo. Mamãe deve estar zangada, e Clara pode estar pensando que aqui
levo uma boa vida, esquecendo por completo sua querida imagem angelical,
tão profundamente gravada em meu coração e em minha mente. Mas não e
assim; todos os dias e a toda hora penso em vocês todos, e em doces
devaneios aparece a minha querida Clarinha sorrindo-me com seus olhos
tão graciosos, como de costume, quando estava junto a vocês. Ah, mas
como poderia escrever-lhes com o estado de espírito tão dilacerado, que
vem me confundindo todos os pensamentos! Algo de terrível aconteceu em
minha vida! Sombrios pressentimentos de um cruel e ameaçador destino
estendem-se sobre mim quais sombras de nuvens negras, impenetráveis a
qualquer benevolente raio de sol. Agora devo dizer-lhe o que me
aconteceu. Reconheço que é necessário fazê-lo, mas, só em pensar nisso,
escapa-me um
riso de louco. Ah, meu
caríssimo Lotar, como farei para que de alguma forma você sinta que o
que me sucedeu há alguns dias perturbou minha vida de maneira tão
terrível? Se ao menos você estivesse aqui, poderia ver com seus próprios
olhos; mas, tenho certeza, certamente vai me considerar um
supersticioso visionário. Em suma, o terrível acontecimento em questão,
de cuja fatal influência em vão esforço-me por evitar, consiste
simplesmente em que, há alguns dias, exatamente no dia 30 de outubro, ao
meio-dia, um vendedor de barômetros entrou em meu quarto e me ofereceu
seus instrumentos. Não
comprei nada e ameacei jogá-lo escada abaixo, mas ele então saiu voluntariamente.
Você
pode imaginar que somente circunstâncias bem particulares e marcantes
de minha existência são capazes de explicar o significado desse
incidente, e que a pessoa desse funesto caixeiro-viajante possa ter um
efeito pernicioso sobre mim. De fato, todo sangue-frio me é necessário
para, com calma e paciência, contar-lhe detalhes de minha infância, que
permitirão a sua mente vivaz compreender tudo de maneira límpida e
transparente.
Agora, quando começo, tenho a
impressão de ouvir o seu riso e as palavras de Clara: "Tudo isso não
passa de criancice!" Riam, por favor, riam muito de mim! Peço-lhes
encarecidamente! Mas Deus do céu! Meus cabelos arrepiam-se, e é como se
eu lhes implorasse, loucamente desesperado, para que riam de mim, como
Franz Moor fez a Daniel. Vamos aos fatos!
À
exceção da hora do almoço, eu e meu irmão pouco víamos nosso pai durante
o dia. Ele talvez estivesse muito ocupado com os seus negócios. Depois
do jantar, que segundo o velho costume era servido às sete horas, íamos
todos, mamãe conosco, ao gabinete de papai e nos sentávamos em torno de
uma mesa redonda. Papai fumava seu tabaco e bebia um grande copo de
cerveja. Muitas vezes narrava-nos histórias maravilhosas, e aquelas
narrativas entusiasmavam-no tanto, que o seu cachimbo sempre se apagava.
Cabia a mim, segurando um papel em chamas, acendê-lo novamente, o que
consistia no meu principal divertimento. Freqüentemente também, ele nos
dava livros ilustrados, sentava-se mudo e inerte em sua poltrona e
expelia espessas nuvens de fumaça, de forma que todos nós
ficávamos
como que envoltos na névoa. Em noites como essas mamãe ficava muito
triste e, mal soavam as nove horas, falava-nos: "E agora, crianças, para
a cama, para a cama! O Homem da Areia está chegando, já posso ouvir
seus passos." De fato, todas as vezes eu ouvia passadas pesadas e lentas
subindo a escada; devia ser o Homem da Areia. Certa vez, aquele andar
abafado causou-me uma impressão particularmente aterradora. Perguntei a
mamãe, enquanto ela nos levava:
"Mamãe!
Quem é mesmo o malvado Homem da Areia que sempre nos separa de papai?
Como é ele?" "Não existe nenhum Homem da Areia, meu filho", respondeu
minha mãe. "Quando digo que o Homem da Areia está chegando, isso quer
dizer apenas que vocês estão com sono e não conseguem manter os olhos
abertos, como se alguém tivesse jogado areia neles." A resposta de mamãe
não me satisfez; em meu espírito infantil desenvolveu-se claramente a
idéia de que mamãe só negava a existência do Homem da Areia para que não
ficássemos amedrontados, pois eu ouvia quando ele subia pela escada.
Curioso
em saber mais sobre aquele Homem da Areia e sua relação com crianças
como nós, finalmente perguntei à velha criada que cuidava de minha irmã
sobre que tipo de homem era aquele, o Homem da Areia. "Natanaelzinho",
respondeu ela, "você então não sabe? É um homem malvado que aparece para
as crianças quando elas não querem ir dormir e
joga-lhes
punhados de areia nos olhos, de forma que estes saltam do rosto
sangrando; depois ele os mergulha num saco e carrega-os para a Lua, para
alimentar os seus rebentos. Eles ficam lá, empoleirados em seu ninho e,
com o bico recurvado como o das corujas, bicam os olhos das criancinhas
travessas ". Aterrorizado, a partir de então considerei o Homem da
Areia sob um aspecto noturno. A noite, bastava ouvir o ruído de passos
na escada para tremer de medo e horror Mamãe só conseguia arrancar de
mim o grito entre
lágrimas: "O Homem da
Areia! O Homem da Areia! ", depois eu corria para o quarto, e durante a
noite toda atormentava-me a temível imagem do Homem da Areia.
Eu
já estava crescido o suficiente para compreender que aquela história
contada pela ama-seca sobre o Homem da Areia e o seu ninho com crianças
na Lua realmente não podia estar lá muito correta; todavia, o Homem da
Areia continuava sendo para mim um terrível fantasma, e o terror me
arrebatava quando o ouvia não apenas subir as escadas, como também abrir
e entrar violentamente no gabinete de meu pai. As vezes passava muito
tempo sem aparecer; depois vinha muitas vezes consecutivas. Isso durou
anos, e não
pude me acostumar à sinistra
assombração — a figura aterrorizante do Homem da Areia não saía da minha
cabeça. Suas relações com meu pai passaram a ocupar cada vez mais a
minha imaginação, e um medo insuperável impedia-me de interrogá-lo sobre
o assunto, mas, com os anos, sedimentou-se e germinou em mim a vontade
de investigar o mistério, de ver o fabuloso Homem da Areia. Ele me
conduzira para o caminho do maravilhoso, do
romanesco,
que com muita facilidade instala-se na alma infantil. Nada me agradava
mais do que ouvir ou ler aterrorizantes histórias de duendes, bruxas e
anões. Mas em primeiro lugar estava sempre o Homem da Areia, que eu
desenhava com giz ou carvão, da forma mais estranha e abominável, em
mesas, armários e paredes.
Quando fiz dez
anos, minha mãe mudou-me do quarto de crianças para um pequeno aposento
que dava para um corredor não muito distante do gabinete de papai. Mal
batiam as nove horas e ouvíamos o desconhecido entrar, éramos obrigados a
nos retirar rapidamente. Em meu quartinho, percebia quando ele entrava
no gabinete de papai, e logo em seguida tinha a impressão de que se
espalhava pela casa um vapor suave e de raro odor com minha curiosidade,
cada vez mais ardia o desejo de, com coragem e determinação, travar
conhecimento com o Homem da Areia. Muitas vezes, quando mamãe já havia
passado, eu saía rapidamente do quartinho para o corredor, mas nada
podia escutar, pois o Homem da Areia sempre havia ultrapassado a porta,
quando eu chegava ao local de onde ele poderia ser visto. Levado por um
irresistível impulso, decidi esconder-me no gabinete de papai e esperar o
Homem da Areia.
Certa noite, pelo silêncio
de papai, pela tristeza de mamãe, percebi que o Homem da Areia viria.
Dei como pretexto um grande cansaço, deixei a sala antes das nove e me
escondi bem junto à porta do gabinete, num cantinho. A porta da casa
rangeu, e passos lentos, pesados e ruidosos atravessaram o corredor em
direção à escada. Mamãe passou por mim apressadamente, com meus irmãos.
Suavemente, bem suavemente, abri a porta do aposento de meu pai. Corno
de costume, ele estava sentado com as costas voltadas para a
porta;
calado e imóvel, não percebeu minha presença, e rapidamente entrei e me
escondi atrás da cortina que cobria um armário aberto ao lado da porta,
onde estavam penduradas roupas de meu pai. Os passos aproximaram-se
mais e mais. Do lado de fora, ouviam-se
estranhas
tosses, pigarros e um enigmático murmúrio. Meu coração pulsava forte,
de medo e ansiedade. Perto, bem perto da porta, um passo mais nítido, um
golpe violento no trinco, e a porta se abre com violência! Forçando-me a
tomar coragem, ponho cuidadosamente a cabeça para fora. O Homem da
Areia está no meio do gabinete e diante de meu pai, o brilho claro das
velas ilumina o seu rosto! O Homem da Areia, o terrível Homem da Areia, é
o velho advogado Coppelius, que às vezes almoça em nossa casa! Porém, a
mais aterrorizante figura não me teria provocado tanto horror quanto
aquele Coppelius. Imagine um homem grande, de ombros largos, com uma
cabeça disforme e grande, rosto amarelecido, sobrancelhas fartas e
grisalhas, sob as quais faiscava um par de olhos de gato, esverdeados e
penetrantes, e um nariz gigantesco sobre o lábio superior. A bocarra
retorcia-se com freqüência num riso malicioso, tornando visíveis manchas
vermelhas nas bochechas. Um chiado estranho atravessava seus dentes
cerrados.
Coppelius sempre aparecia num
sobretudo cinzento de corte antigo, com o colete e a calça semelhantes,
mas de meias pretas e sapatos com pequenas fivelas enfeitadas com
pedraria. A pequena peruca mal lhe cobria o cocuruto, dois cachos
postiços estavam colados acima das grandes e vermelhas orelhas, e um
grande coque afastava-se da nuca, de forma que se via a fivela prateada
que fechava o colarinho pregueado. A figura no conjunto era medonha e
abjeta; mas para nós, crianças, o que nos chocava mais eram suas grandes
mãos, ossudas e peludas, tanto que evitávamos pegar no que tocavam. Ele
notara essa repugnância, e então se divertia em bolinar com as mãos,
sob esse ou aquele pretexto, um pedaço de bolo ou uma fruta que a boa
mamãe deixara furtivamente em nosso prato. Nós, com lágrimas nos olhos,
não conseguíamos mais desfrutar; por nojo e aversão, as gulodices antes
destinadas ao nosso prazer. A mesma coisa ele fazia em dias de festa,
quando papai nos servia um pequeno cálice de vinho doce. Rapidamente,
ele passava a mão em sua borda ou levava o cálice aos lábios azulados,
rindo diabolicamente quando percebia que nos era permitido manifestar
nossa irritação baixinho, aos soluços. Tinha por hábito nos chamar de
"pequenas
bestas". Não podíamos abrir a boca
em sua presença e amaldiçoávamos aquele homem feio e hostil que
conseguia estragar propositadamente a menor de nossas alegrias. Mamãe,
como nós, parecia odiar o repugnante Coppelius; pois, quando ele
aparecia, sua jovialidade, seu jeito de ser alegre e despreocupado
transformava-se numa gravidade triste e sombria. Papai
comportava-se
como se fosse ele um ser superior, com cujos maus costumes devia-se ter
paciência e conservar bom humor Bastava uma sutil sugestão sua, e
preparavam-se seus pratos prediletos, que eram acompanhados de vinhos
raros, abertos em sua homenagem.
Quando vi o
tal Coppelius, a verdade se me revelou terrível e ameaçadora: ninguém
senão ele poderia ser o Homem da Areia! Mas o Homem da Areia não era
mais para mim aquele espantalho das histórias da carochinha, que vai
arrancar os olhos das criancinhas para servir de alimento a sua ninhada
de corujas na Lua. Não! Era um monstro fantasmagórico que carregava
consigo, aonde fosse, aflição, miséria e ruína eternas.
Eu
estava enfeitiçado. Frente ao perigo de ser descoberto e, como eu
pensava, duramente castigado, continuei ali, ouvindo tudo com a cabeça
para fora da cortina. Meu pai recebeu Coppelius cerimoniosamente. "Ao
trabalho", exclamou este, com uma voz rouca e rascante,
desembaraçando-se do sobretudo. Calma e sombriamente, papai tirou seu
roupão, e
ambos vestiram longas túnicas negras. Não percebi de onde as haviam tirado.
Meu
pai abriu as portas de um armário, e então constatei que aquilo que eu
sempre pensara ser um armário era na verdade um nicho profundo, onde
estava um pequeno fogão. Coppelius aproximou-se, e uma chama azul ardeu.
Havia ali todo tipo de aparelhos estranhos. Ah. Deus! Ao inclinar-se em
direção ao fogo, meu pai parecia outro. Uma dor cruel e convulsiva
parecia metamorfosear seus traços na mais horrenda e repugnante imagem
diabólica. Ele se assemelhava a Coppelius! Este brandia tenazes
incandescentes e com elas retirava da fumaça densa massas claras e
cintilantes, que depois martelava com violência.
Tive
a sensação de que rostos humanos tornaram-se visíveis a sua volta, mas
não tinham olhos — ao invés deles, profundas e horrendas cavidades
negras. "Que venham os olhos, que venham os olhos!", gritou Coppelius
com uma voz surda e ameaçadora. Completamente aterrado, soltei um berro
e, saindo de meu esconderijo, caí no chão. "Pequena besta! Pequena
bestar, rosnou ele, rangendo os dentes. Subitamente me ergueu e jogou-me
sobre o fogão, de maneira que as chamas começaram a chamuscar meu
cabelo:
"Agora temos olhos — olhos —, um
lindo par de olhos infantis." Foi o que murmurou Coppelius, pegando com
as mãos um punhado de brasas incandescentes para atirar em meus olhos,
enquanto meu pai implorava, erguendo as mãos e gritando: "Mestre!
Mestre! Deixe os olhos de meu Natanael — deixe-os com ele!" Coppelius
gargalhou estridentemente: "Que o rapazinho conserve os seus olhos para
choramingar sua sina pelo mundo! Mas agora vamos observar atentamente o
mecanismo das mãos e dos pés."
Com isso, pegou-me com tanta violência que minhas articulações estalaram, girando
minhas
mãos e meus pés e recolocando-os ora aqui, ora acolá. "Não ficam bem em
lugar nenhum! E melhor deixar como estavam. O velho lá de cima entendia
bem do riscado!" Assim Coppelius silvava e ciciava; mas tudo a minha
volta tornou-se negro, escuro, uma súbita convulsão percorreu meus
nervos e ossos — eu não sentia mais nada. Um sopro suave e morno passou
pelo meu rosto e despertei como de um sono de morte. Mamãe estava
inclinada sobre mim. "O Homem da Areia ainda está aí?", balbuciei. "Não,
filhinho, já foi há muito, muito tempo, e não lhe fará mal!" Assim
falou mamãe, beijando e acariciando o filho predileto, já restabelecido.
Por que fatigar-lhe tanto, meu caro Lotar, contando-lhe todos esses
detalhes, se tanta coisa importante ainda tenho a dizer? Em suma, fui
descoberto enquanto espiava e cruelmente maltratado por Coppelius. Medo e
susto causaram-me uma febre escaldante, e fiquei doente por várias
semanas. "O Homem da Areia ainda está aí?" Estas foram as minhas
primeiras palavras concatenadas e o sinal de minha recuperação, de minha
salvação. Devo contar-lhe ainda o mais terrível momento de meus anos de
infância; então ficará convencido de que não é culpa de meus olhos se
agora tudo me parece descolorido, mas que realmente uma fatalidade
cobriu minha vida com um denso véu de nuvens, que só com minha morte,
talvez, se dissipará.
Coppelius não
apareceu mais. Dizia-se que deixara a cidade. Mais ou menos um ano
depois, estávamos sentados à noite em torno da mesa redonda, segundo o
velho e imutável costume. Papai estava muito alegre e contava histórias
divertidas das viagens que fizera na juventude. Foi quando de repente
ouvimos, às nove horas, os gonzos da porta soar, e passos
lentos
e pesados como ferro avançaram em direção à escada. "É Coppelius",
disse minha mãe, empalidecendo. "Sim, é Coppelius", repetiu meu pai com
voz frágil e hesitante. Lágrimas rolaram dos olhos de minha mãe. "Meu
amigo, meu amigo!", exclamou ela, "precisa ser assim?" "Pela última
vez!", ele respondeu, "pela última vez ele virá aqui, eu juro. Agora vá,
vá com as crianças! Vão para a cama! Boa noite!"
Eu
estava como que petrificado, minha respiração vacilava! Vendo-me
imóvel, mamãe pegou-me pelo braço. "Venha. Natanael, venha!" Deixei-me
levar e entrei no meu quarto. "Acalme-se, acalme-se; vou pô-lo na cama.
Durma, durma", pediu minha mãe. Porém, torturado pela angústia e presa
de profunda inquietação, não consegui fechar os olhos. O
odioso
e repugnante Coppelius surgia a minha frente com olhos faiscantes e
sorria hipocritamente. Em vão, tentei livrar-me de sua imagem. Já
deveria ser meia-noite quando se ouviu um temível barulho, como se uma
artilharia houvesse começado a disparar Toda a casa estremeceu, perto da
porta de meu quarto passaram ruídos e rumores e então a porta da frente
bateu ruidosamente. "É Coppelius!", gritei assustado, e saltei da cama.
Então ouvi
um lamento dilacerante e
inconsolável e precipitei-me para o gabinete de meu pai; a porta estava
aberta, um vapor sufocante se fez sentir, enquanto a criada gritava:
"Ah, patrão, ah, patrão!" Diante do fogão fumegante, no chão,
encontrava-se meu pai, morto, com o rosto terrivelmente desfigurado e
queimado, e ao seu redor choravam e gemiam minhas irmãs; mamãe a seu
lado, desmaiada! "Coppelius, maldito Satã, você matou meu pai! ", foi
assim
que gritei, perdendo os sentidos. Dois
dias depois, quando foi colocado no caixão, seus traços voltaram a ser
suaves e tranqüilos, como em vida. O
que foi um consolo, pois imaginara em meu espírito que o seu pacto com o
diabólico Coppelius poderia condená-lo à danação eterna. A explosão
havia acordado os vizinhos. O acontecimento tornou-se público
e
chegou às autoridades, que queriam intimar Coppelius como responsável
pelo fato. Este, porém, havia desaparecido sem deixar pistas. Se lhe
disser, caro amigo, que aquele vendedor de barômetros era justamente o
maldito Coppelius, você compreenderá por que interpreto sua hostil
aparição como presságio de uma terrível desgraça. Usava outras roupas,
mas a figura de Coppelius e os traços do rosto estão de tal modo
impregnados em minha memória que não pude deixar de reconhecê-lo. Além
disso, ele nem ao menos trocou de nome. Faz-se passar agora, como ouvi
dizer, por um mecânico piemontês e se denomina Giuseppe Coppola. Estou
decidido a enfrentá-lo e vingar a morte de meu pai, aconteça o que
acontecer. Não conte nada a mamãe sobre a aparição desse monstro cruel.
Dê
lembranças a minha encantadora Clara; escreverei a ela com mais calma.
Saudações etc. etc.
Clara a Natanael
É
verdade que você não me escreve há muito tempo, mas mesmo assim
acredito que me carrega no coração e no espírito. Pois com certeza você
estava pensando em mim quando, pretendendo destinar sua última carta a
meu irmão Lotai; endereçou-a a mim. Com muita alegria abri o envelope e
só então percebi o equívoco às primeiras palavras: "Ah, meu caríssimo
Lotar!"
— Não deveria ter continuado a ler;
entregando a carta a meu irmão. Às vezes você brincava comigo,
acusando-me de possuir um temperamento tão calmo e ponderadamente
feminino que, se a casa desabasse, eu agiria como aquela mulher que,
antes da fuga rápida, ainda arrumou as cortinas da janela. Entretanto,
posso assegurar-lhe que o início de sua carta me abalou profundamente.
Mal pude respirar, meus olhos turvaram-se. Ah, meu querido Natanael, o
que de mais cruel poderia ter acontecido em sua vida? Separar-me
de você, nunca mais voltar a vê-lo, a idéia atravessou minha cabeça como um golpe de punhal em brasa. Li,
reli! Sua descrição do repugnante Coppelius e aterradora. Só agora
soube como o seu bom e velho pai teve uma morte tão terrível e violenta.
Meu irmão Lotar; a quem entreguei o que lhe era de direito, procurou
acalmar-me, mas quase nada conseguiu. O fatal vendedor de barômetros
Giuseppe Coppola me perseguia sem cessar, e — tenho até vergonha em
confessar — conseguiu perturbar até meu sono, normalmente profundo, com
toda espécie de sonhos estranhos. Mas, logo no dia seguinte, vi as
coisas sob um aspecto mais natural. Não me leve a mal, portanto, meu
querido, se Lotar lhe disser que eu, apesar de seu estranho
pressentimento de que Coppelius irá prejudicá-lo, estou tão serena e
despreocupada como sempre. Com toda a franqueza, quero confessar-lhe
que, a meu ver, tudo de terrível e assustador de que você fala aconteceu
apenas na sua imaginação e que o
mundo
exterior, real, teve pouca participação nisso tudo. O velho Coppelius
era sem dúvida pouco atraente, mas o fato de odiar crianças é que
despertou em vocês essa profunda aversão por sua pessoa. Naturalmente,
em sua alma infantil, o terrível Homem da Areia dos contos da carochinha
associou-se ao velho Coppelius, que permaneceu para você, acredite ou
não no Homem da Areia, um monstro fantasmagórico, perigoso
principalmente para crianças. As práticas sinistras com o seu pai, à
noite, não eram nada senão experiências alquímicas secretas, com as
quais sua mãe se afligia, já que certamente muito dinheiro era
desperdiçado; além disso, como parece acontecer com quem pratica tais
experiências de laboratório, o espírito de seu pai desviava-se da
família, já que se concentrava por inteiro
na
busca ilusória de um saber supremo. Seu pai, com certeza por um
descuido qualquer; causou a própria morte, e Coppelius não poderia ser
acusado. Você acreditará em mim se eu disser que ontem perguntei a um
farmacêutico experiente, meu vizinho, se era possível tal explosão,
repentina e fatal? Ele disse: "Sim, claro", e descreveu-me, a sua
maneira, detalhada e morosa, como isso poderia ocorrer, citando nomes
que de tão estranhos não
fui capaz de
guardar. Agora você certamente está irritado com sua Clara e dirá:
"Nesse espírito frio não penetra sequer um raio do Misterioso, que
muitas vezes envolve os homens com braços invisíveis; ela contempla
apenas a superfície colorida do mundo e alegra-se como uma ingênua
criancinha com a fruta de brilho dourado, em cujo interior esconde-se o
veneno mortal." Ah, meu bem-amado Natanael, pois você não acredita que
também os
espíritos tranqüilos,
despreocupados e serenos podem abrigar o pressentimento de uma força
obscura, que almeja apoderar-se de nossa consciência? Mas perdoe-me se
eu, simplória moça que sou, atrevo-me a insinuar, de alguma maneira, o
que na verdade penso sobre essa espécie de combate interior Afinal,
quase não encontro as palavras certas e
talvez
você zombe de mim; não porque pense algo de muito tolo, mas porque o
expresso de maneira tão desajeitada. Se existe uma força obscura que,
hostil e traiçoeira, tece em torno de nós um fio com o qual nos agarra e
arrasta através de um caminho pérfido e destruidor por onde normalmente
não passamos, se existe tal força, ela então deve assimilar-se a nós
mesmos, tornando-se, por assim dizer; parte de nossa essência; pois só
assim acreditaríamos nela e lhe daríamos lugar em nosso coração para
realizar sua obra secreta. Se tivermos a mente suficientemente
fortalecida por uma vida serena para reconhecermos sempre, enquanto
tais, as influências estranhas e hostis e seguirmos com passos
tranqüilos o
caminho ao qual nossa
inclinação ou vocação nos apontou, então essa força sinistra sucumbirá
em seus vãos esforços para nos iludir. É também certo, acrescenta Lotar,
que, se nos entregarmos a essas forças obscuras, nós mesmos
produziremos o principio devorador que nos consome. Assim, seríamos nós
mesmos que atiçamos o espírito que parece falar através dessas formas,
exatamente como nossa loucura as faz imaginar: É o fantasma de
nosso
próprio ser; cuja estreita ligação e profunda influência sobre o nosso
espírito mergulham-nos no inferno ou arrebatam-nos ao céu. Você pode
observar; meu querido Natanael, que nós, eu e meu irmão Lotar;
conversamos longamente a respeito de forças e poderes obscuros, assumo
que agora, depois de ter escrito o essencial, e não sem dificuldades,
parece-me bastante profundo. Não entendo muito bem as últimas palavras
de
Lotar, mas presumo o que ele pretendia
dizer e sinto que está certo. Peço-lhe que esqueça o horroroso advogado
Coppelius e o vendedor de barômetros Giuseppe Coppola. Convença-se de
que essas figuras estranhas não têm poder sobre você; apenas a crença na
força hostil delas ?ode de fato fazê-la hostil a você. Se cada linha de
sua carta não expressasse a mais
profunda
agitação do espírito, se o seu estado não me afligisse no fundo d'alma,
eu poderia, afinal, zombar do seu Homem da Areia e do vendedor de
barômetros. Tranqüilize-se, por favor! Decidi que serei para você uma
espécie de espírito protetor e espantarei com uma gargalhada o hediondo
Coppelius, se ele se atrever a introduzir-se em seus sonhos. Não tenho
medo algum dele e de suas mãos feias; advogado ou Homem da Areia, ele
não irá
estragar minhas iguarias, tampouco lançar areia em meus olhos. Eternamente, meu bem-amado Natanael etc. etc. etc.
Natanael a Lotar
Foi
muito desagradável para mim que, em função de minha própria negligência
e distração. Clara recentemente tenha aberto e lido minha carta
dirigida a você. Ela me escreveu uma carta bastante grave e filosófica,
na qual demonstra pormenorizadamente que Coppelius e Coppola só existem
em minha mente e são fantasmas de meu eu que se pulverizarão no momento
em que reconhecê-los como tais. Aliás, é difícil acreditar que esse
espírito, que
muitas vezes brilha como um
sonho bom naqueles olhos claros de criança, encantadores e sorridentes,
possa fazer distinções teóricas dignas de mestre. Ela se refere a você.
Vocês falaram sobre mim. Talvez você lhe tenha ministrado aulas de
lógica, para que ela aprendesse a ordenar e distinguir tudo muito bem.
Renuncie a isso! De resto, é praticamente certo que o vendedor de
barômetros Coppola não seja o velho advogado Coppelius.
Tenho
aulas com um professor de física, recém-chegado à cidade, que tem o
mesmo nome do célebre naturalista Spalanzani, e é também de origem
italiana. Ele conhece o Coppola há muitos anos e, além disso, vê-se por
sua pronúncia que se trata realmente de um piemontês. Coppelius era
alemão, mas não me parece que fosse legítimo. Não estou inteiramente
tranqüilizado. Você e Clara podem me considerar um sombrio visionário,
mas não consigo me livrar da impressão que o maldito rosto de Coppelius
produziu em mim. Fico
feliz que ele tenha deixado a cidade, como me informou Spalanzani. Esse
professor é um tipo esquisito. Um homenzinho arredondado, o rosto de
salientes bochechas, nariz afilado, lábios carnudos, olhos pequenos e
penetrantes. Melhor que qualquer descrição, porém, é vê-lo num retrato
de Cagliostro feito por Chodowiecki, num almanaque berlinense qualquer
Spalanzani parece-se com ele. Recentemente, subindo as escadas, percebi
que uma cortina, que normalmente permanece bem fechada sobre uma porta
de vidro, estava um pouco aberta. Eu mesmo não sei o que me levou à
curiosidade de espiar através dela. Uma mulher alta e muito magra,
esplendidamente vestida, estava sentada no quarto diante
de
uma mesinha, sobre a qual pousara os braços, com as mãos cruzadas.
Estava sentada diante da porta, de forma que pude ver com clareza o seu
belo rosto angelical. Ela pareceu não me notar, e seu olhar tinha algo
de fixo, diria até que não via nada, como se ela dormisse de olhos
abertos. Aquilo me pareceu muito desagradável, e precipitei-me
silenciosamente em direção ao anfiteatro que fica ao lado. Mais tarde
soube que a figura
que eu vira era a filha
de Spalanzani. Olímpia, que ele mantém reclusa, por motivos singulares e
suspeitos, de maneira que a ninguém é permitido aproximar-se dela.
Talvez realmente haja algo de estranho com ela, talvez seja demente ou
coisa parecida. Por que lhe escrevo tudo isto? Teria sido melhor
narrar-lhe tudo pessoalmente e com detalhes. Saiba que em duas semanas
estarei com vocês. Preciso rever meu doce anjo, minha querida
Clara.
Então se dissipará essa sensação que, devo confessar, quis apoderar-se
de mim depois daquela judiciosa carta que me escreveu. É por isso que
hoje não lhe escreverei.
Muitas lembranças
etc. etc. etc. Não se poderia inventar nada de mais estranho e singular
do que o ocorrido com o meu pobre amigo, o jovem estudante Natanael, e
que agora decido
contar-lhe, caro leitor.
Alguma vez, benevolente leitor, você já vivenciou algo que houvesse
ocupado todo o seu peito, mente e pensamentos, deixando de lado o resto?
Quem nunca experimentou a sensação de uma fervura interna que,
incandescente, percorre o sangue nas
veias,
colorindo o rosto de um encarnado sombrio? Seu olhar, então, torna-se
estranho, como se você quisesse apreender, no espaço vazio, formas
invisíveis a seus olhos, e as palavras se diluem em sombrios soluços. Em
vão, os amigos lhe perguntam: "O que está acontecendo, meu caro? O que
tem, honrado amigo?" E então você descreveria sua sensação íntima em
todas as suas cores ardentes, sombras e luzes, lutando inutilmente para
encontrar as palavras que pudessem refletir seu pensamento. Mas era como
se você precisasse resumir logo na primeira palavra tudo o que de
maravilhoso, esplêndido, terrível,
divertido
e cruel lhe aconteceu, causando a todos a sensação de um choque
elétrico. Mas cada palavra, cada sílaba, tudo lhe pareceria sem cor,
frio e morto. Você procuraria e procuraria, gaguejaria e balbuciaria, e
as tímidas perguntas dos amigos arrefeceriam, como um sopro de vento
gelado, o seu ardor interior até que este se apagasse. Mas se, como um
pintor destemido, esboçasse você, com poucos e ousados traços, o
contorno de sua pintura
interior, então
facilmente você passaria a colori-la gradualmente, e o vivo tumulto de
figuras multiformes arrebataria seus amigos, e eles, como você, se
veriam nesse quadro criado por sua imaginação! Devo confessar, caro
leitor, que ninguém me pediu que contasse a história do jovem Natanael;
mas você bem sabe que pertenço à particular espécie de autores que,
carregando consigo algo como o que acabei de descrever, tem a sensação
de que todos que se aproximam, e ainda o mundo inteiro, perguntam: "O
que aconteceu? Conte, meu caro!" Foi essa força que me arrastou a contar
o fatal destino que assaltou a vida de Natanael. O maravilhoso e
estranho dessa aventura arrebatou minh'alma, e eis por que, caro leitor,
eu precisava despertar em você a inclinação para o fantástico, o que
não é nada fácil, e me esforçar para começar a história de Natanael de
forma significativa, original, surpreendente: "Era uma vez..." — o mais
belo começo para qualquer história, mas muito tímido; "Na pequena cidade
do interior. S., morava..." — um pouco melhor, pelo menos prepara para o
clímax. Ou logo medias in res: "`Vá para o diabo', exclamou o estudante
Natanael, lançando olhares ferozes, quando o vendedor de barômetros
Giuseppe Coppola..." — na verdade, eu começara assim, quando acreditei
sentir nos olhares ferozes do estudante Natanael algo de burlesco; mas a
história, porém, nada tem de divertida. Não me ocorreu nenhum discurso
que pudesse, pelo menos, refletir o brilho colorido do quadro que eu
elaborara no espírito.
Decidi então
simplesmente não começar. Aceite portanto, caro leitor, as três cartas
que o amigo Lotar gentilmente me cedeu, como o esboço da imagem à qual a
partir de agora me esforçarei para dar mais e mais cor. Talvez eu
consiga rabiscar algumas figuras como um bom pintor de retratos, fazendo
com que você ache parecido sem conhecer o original, sim, como se você
tivesse a sensação de ter visto a pessoa muitas vezes com os próprios
olhos.
Talvez, então, o leitor acredite que
nada é mais fantástico e louco do que a vida real, e que o escritor só
poderia apreender tudo isso como um reflexo confuso de um espelho mal
polido. Para que fique mais claro o que é preciso saber logo de início,
convém acrescentar às cartas precedentes que logo em seguida à morte do
pai de Natanael. Clara e Lotar, filhos de um parente afastado, também
falecido, foram acolhidos pela mãe de Natanael. Clara e Natanael
cultivaram uma grande afeição um pelo outro, contra a qual ninguém
apresentou qualquer objeção; assim, estavam noivos quando Natanael
deixou a cidade para continuar seus estudos em G. É lá que se encontra
ao escrever a última carta, e é lá que assiste às aulas do famoso
professor de física. Spalanzani. Agora eu poderia continuar a narração
tranquilamente; mas neste momento a imagem de Clara está tão viva diante
de mim, que não consigo desviar os olhos, o que sempre acontecia quando
ela me fitava com um sorriso tão encantador. Clara não poderia ser
considerada bonita; era o que diziam todos que entendiam de beleza por
ofício. Mas os arquitetos elogiavam as proporções delicadas de seu
corpo, os pintores viam algo de casto na forma de sua nuca, ombros e
colo, mas apaixonavam-se era pelos maravilhosos cabelos, que lembravam a
Madalena de Correggio, e falavam muito das tonalidades de sua tez,
digna de um Battoni3. Um deles, de muita imaginação, estranhamente
comparou os olhos de Clara a um lago de Ruisdaël4, onde se refletem o
céu claro, de raro azul, bosques e campos floridos, a rica paisagem de
uma vida
colorida e serena. Poetas e
artistas, porém, iam mais longe e falavam: "Que lago que nada, que
espelho que nada! Será que podemos olhar para a moça sem que seus olhos
irradiem maravilhosos e divinos cantos e sons que penetram em nossa
alma, de forma que tudo se torna vivo e animado? Se não cantamos nada de
autêntico, então nada de autêntico existe em nós, e isto lemos
nitidamente no fino sorriso em torno dos lábios de Clara, quando nos
atrevemos a tartamudear-lhe algo que tem a pretensão de ser música ou
poesia, embora
apenas alguns sons estejam sendo embaralhados."
De
fato, era assim. Clara tinha a vigorosa fantasia de uma criança alegre e
despreocupada, um coração profundamente feminino e doce, uma
inteligência penetrante e lúcida. Os espíritos levianos e presunçosos
tinham nela uma difícil adversária; pois sem falar muito, o que aliás
condizia com sua natureza silenciosa, aquele olhar nítido, aquele
sorriso refinado e irônico diziam-lhes: "Queridos amigos! Como podem
imaginar que eu considere essas sombras difusas como figuras reais, com
vida e calor?" Por esse motivo. Clara era vista por muitos como fria,
insensível e prosaica. Mas outros, que conseguem captar a vida com sua
transparente profundidade, gostavam muito da moça cheia de vida, sensata
e com espírito infantil. No entanto, ninguém a amava mais que Natanael,
que se dedicava então com força e entusiasmo ao mundo da ciência e da
arte. Clara amava-o de todo o coração; as primeiras sombras surgiram no
momento que a deixou. Qual não foi sua alegria ao voar em seus braços,
quando ele, conforme dizia na última carta a Lotar, realmente chegou à
cidade natal e entrou na sala da casa de sua mãe! Tudo aconteceu como
Natanael esperava; pois no momento em que reviu Clara, não pensou nem no
advogado Coppelius nem na racional carta de Clara. Desaparecera
qualquer irritação. Entretanto Natanael tinha razão ao escrever a seu
amigo Lotar que a repugnante figura do vendedor de barômetros. Coppola,
de fato entrara de forma hostil em sua vida. Todos sentiram isso, já que
logo nos primeiros dias
Natanael
mostrara-se diferente do que habitualmente era. Mergulhou em divagações
sombrias e logo começou a agir de modo estranho, como ninguém vira
antes. Tudo, toda a vida era para ele sonho e pressentimento; falava
sempre que toda pessoa, julgando-se livre, só fazia servir a poderes
obscuros, num jogo cruel, contra os quais é inútil revoltar-se; devia-se
submeter humildemente àquilo que designara o destino. Chegou a afirmar
que achava tolice considerar a criação, na arte e na ciência, um ato de
vontade; pois o entusiasmo, imprescindível para criar, não parte da
alma, sendo o efeito de um
princípio
superior, exterior a nós. Para a sensata Clara, aquelas exaltações
místicas eram altamente desagradáveis, mas parecia inútil tentar
contradizê-las. Só quando Natanael
demonstrava
que Coppelius era o princípio do Mal que momentaneamente se apoderara
dele, ao espreitar atrás da cortina, e que esse demônio repugnante iria
perturbar terrivelmente a sua felicidade amorosa, é que Clara ficava
muito séria e dizia-lhe: "Sim. Natanael, você tem razão! Coppelius é um
princípio maligno e hostil, ele pode provocar coisas terríveis como uma
força diabólica que penetrou em sua vida, mas isso apenas se você não o
banir de seu espírito. Enquanto acreditar nele, ele existirá e agirá; a
sua credulidade é a força dele."
Natanael,
um dia, irritado por Clara insistir em atribuir a existência do demônio
apenas a seu espírito fraco, pôs-se então a discursar sobre todos os
ensinamentos místicos a respeito de demônios e forças cruéis.
Desgostosa. Clara pôs fim à conversa, passando a falar de coisas sem
maior importância, para despeito de Natanael. Ele acreditava que
espíritos frios e pouco receptivos não estão aptos a compreender
mistérios tão profundos, sem se dar
conta de
que com isso considerava Clara uma dessas naturezas inferiores, embora
não desistisse de tentar iniciá-la naqueles mistérios. De manhã cedo,
quando ela o ajudava a preparar o café, ele vinha para o seu lado e
começava a ler diversas passagens de seus livros místicos. "Mas querido
Natanael", comentou Clara depois de uns instantes de atenção, "se eu
dissesse que você é o princípio do Mal que tem efeitos hostis sobre o
meu café? Pois se eu, como você quer, deixasse tudo de lado e, durante
sua conferência, o olhasse nos
olhos, o café acabaria por derramar no fogo, e então ninguém teria café da manhã!"
Natanael
fechou o livro com violência e, furioso, foi para o seu quarto.
Outrora, ele alimentara um talento especial para a composição de
histórias encantadoras e graciosas, as quais Clara ouvia com o maior
prazer; agora seus textos eram sombrios, incompreensíveis, disformes, de
modo que, mesmo quando Clara não o dizia, ele mesmo sentia que eles
pouco lhe haviam interessado. Nada era para Clara pior do que o tédio;
em seu olhar e em suas
palavras
expressava-se uma invencível sonolência mental. Ora, as composições de
Natanael eram de fato entediantes. Seu desgosto para com o espírito frio
e prosaico de Clara aumentou, e esta não podia superar a sua irritação
com o sombrio, obscuro e entediante misticismo de Natanael e, sem
perceber o fato, ambos se distanciavam cada vez mais um do outro. A
figura do hediondo Coppelius, como confessava o próprio Natanael,
empalidecera em sua imaginação, e às vezes muito lhe custava revesti-lo
de cores vivas em seus poemas, onde aparecia como um terrível
espantalho. Um dia, para completar, ocorreu-lhe que aquele sombrio
pressentimento de que Coppelius iria perturbar a sua felicidade amorosa
poderia ser matéria de um poema. Representou então a si e a Clara
ligados por um amor fiel. Mas de tempos em tempos era como se uma mão
negra interviesse em suas vidas, subtraindo-lhes qualquer espécie de
alegria. Finalmente, quando se encontravam diante do altar, aparecia o
terrível Coppelius e tocava os encantadores olhos de Clara, que saltavam
no peito de Natanael, como faíscas sangrentas chamuscando e ardendo.
Coppelius apoderava-se dele e jogava-o num círculo de fogo em chamas,
que girava com a rapidez de uma tempestade e o levava para longe,
zunindo e bramindo. Era o rugido de um furacão, que chicoteava irado as
espumantes ondas do mar, que se erguiam como gigantes negros de cabeças
brancas, numa luta furiosa. Mas através desse rugido selvagem ele ouvia a
voz de Clara: "Será que você pode me ver? Coppelius o enganou, não
foram os meus olhos que queimaram em seu peito, mas gotas ardentes do
sangue de seu próprio coração — tenho
os
meus olhos, olhe para mim!" Natanael pensava: "É Clara, e serei dela
eternamente." Esse pensamento entrava então de forma tão violenta no
círculo de fogo, que ele se detinha, e no abismo negro o estrondo
perdia-se num som abafado. Natanael olhou nos olhos da noiva; mas era a
morte que o contemplava calmamente nos olhos de Clara.
Enquanto
Natanael escrevia esse poema, estava muito calmo e circunspecto,
burilando e melhorando cada verso, e, como se submetera ao incômodo da
métrica, não descansou até que tudo soasse agradável e perfeito. Quando,
porém, finalmente terminou e leu o poema em voz alta, um horror e
terror selvagem o assaltou, fazendo com que exclamasse: "De quem é essa
voz medonha?" Mas logo em seguida aquilo lhe pareceu um poema muito
bem-sucedido,
e acreditou que conseguiria inflamar o frio espírito de Clara, embora
não percebesse com nitidez por que deveria inflamá-la e por que, afinal,
amedrontá-la com imagens aterradoras, que profetizavam um destino
cruel, destruidor de seu amor.
Estavam os
dois sentados no pequeno jardim da casa. Clara estava muito alegre, pois
Natanael já há três dias, durante os quais escrevera seu poema, não a
torturava com seus sonhos e pressentimentos. Como antes, voltara a
conversar com animação e entusiasmo sobre coisas divertidas, fazendo
Clara comentar: "Agora o tenho de volta por inteiro. Viu como expulsamos
o horroroso Coppelius?" Nesse instante Natanael se lembrou de que
trazia o poema no bolso e disse que gostaria de declamá-lo. De imediato,
puxou as folhas e começou a ler; Clara, supondo, como de costume, algo
entediante, resignou-se e começou a tricotar tranqüilamente. Mas à
medida que as sombrias nuvens tornavam-se cada vez mais negras, ela
abaixou a meia que tricotava e fitou imóvel os olhos de Natanael. Este
continuou o seu poema sem interrupções; seu rosto avermelhara-se com o
fogo interior, lágrimas rolaram de seus olhos. Finalmente, ao terminar,
gemeu de profundo cansaço, pegou a mão de Clara e suspirou, como se
sucumbido a uma dor inconsolável: "Ah. Clara! Clara!" Clara apertou-o
docemente contra o seio e disse-lhe em voz baixa, mas lenta e
seriamente:
"Natanael, meu amado Natanael! Jogue ao fogo essa história louca,
absurda, delirante." Indignado. Natanael levantou-se abruptamente e
gritou, repelindo Clara: "Maldito autômato sem vida!" Saiu correndo,
enquanto Clara, profundamente ferida, chorava com amargura: "Ah, ele
nunca me amou, pois não consegue me entender", dizia em voz alta, aos
soluços. Lotar entrou no caramanchão; Clara teve de narrar-lhe o
ocorrido; ele amava sua irmã de todo o coração, e cada palavra de sua
queixa caía-lhe como uma brasa no coração, de maneira que a
predisposição que há muito nutria contra Natanael e seus devaneios ardeu
numa fúria selvagem. Correu até ele e acusou-o com pesadas palavras
pelo comportamento absurdo com a amada irmã, às quais Natanael revidou
com a mesma fúria. Um "janota louco e delirante" foi revidado por um
"sujeito miserável e vulgar". O duelo era inevitável. Decidiram
confrontar-se na manhã seguinte atrás do jardim, com
floretes
bem afiados, segundo um costume acadêmico. Calados e circunspectos,
rondavam o local; Clara escutara a violenta discussão e percebera quando
ao alvorecer o mestre de esgrima trouxera os floretes. Ela pressentia o
que deveria acontecer. Ao chegarem ao local da luta. Lotar e Natanael,
sombriamente silenciosos, tiraram os sobretudos. Com os
olhos
faiscantes e sedentos de luta, já iam lançar-se um sobre o outro quando
Clara precipitou-se pela porta do jardim. Soluçando, gritava: "Vocês
são homens selvagens e terríveis! Matem-me logo, antes de se lançarem um
sobre o outro; pois como poderei viver neste mundo, se o amado matou o
irmão ou o irmão o amado?" Lotar abaixou a arma e olhou calado para o
chão, mas no coração de Natanael renasceu melancolicamente todo o amor
que sentira pela encantadora Clara nos mais belos dias de sua feliz
juventude. A arma
assassina caiu de suas mãos e ele aos pés de Clara. "Será que um dia poderá perdoar-me,
minha
única, minha amada Clara? Pode perdoar-me querido irmão Lotar?" Lotar
comoveu-se com a profunda dor do amigo; sob uma torrente de lágrimas, os
três, reconciliados, abraçaram-se e juraram permanecer unidos em amor e
fidelidade eternos. Natanael teve a sensação de que um peso, que o
empurrava para baixo, fora retirado de seus ombros, sim, como se tivesse
salvo toda a sua existência, resistindo à força sombria que ameaçara
destruí-lo. Ainda passou três felizes dias junto a seus entes queridos,
mas depois voltou a G., onde deveria ficar mais um ano, depois do qual
voltaria definitivamente para sua cidade natal. Tudo o que dizia
respeito a Coppelius foi omitido à mãe de Natanael; todos sabiam que ela
não conseguia pensar nele sem horror, já que, como o filho, culpava-o
pela morte do marido. Qual não foi a surpresa de Natanael ao chegar em
casa e encontrar tudo
queimado, não restando
nada além de um monte de entulhos, do qual se erguiam quatro paredes
nuas e empretecidas. Embora o fogo tenha surgido no laboratório do
farmacêutico, que morava no andar inferior, e se alastrado de baixo para
cima, os audazes e corajosos amigos de Natanael conseguiram entrar a
tempo em seu quarto, no andar superior, e salvar seus livros,
manuscritos e instrumentos. Tudo isso fora levado intacto para outra
casa, onde estava reservado um quarto, no qual Natanael se instalou
imediatamente. Sem estranhar muito, observou que o professor Spalanzani
morava em frente; tampouco deu importância ao fato de que de sua janela
podia olhar diretamente para o quarto onde freqüentemente Olímpia
sentava-se solitária, de modo que agora podia nitidamente contemplar sua
silhueta, ainda que as feições do rosto permanecessem indistintas e
confusas. Finalmente pôde notar
que Olímpia
sentava-se à pequena mesa muitas vezes horas a fio na mesma posição e
sem qualquer ocupação, do mesmo jeito que a vira, tempos atrás, através
da porta de vidro, que ela fitava aparentemente sem mover o olhar.
Precisou confessar a si mesmo nunca ter visto corpo mais belo; porém,
com Clara no coração, a Olímpia rígida e inerte era-lhe totalmente
indiferente, e só de vez em quando olhava, por sobre os seus livros, em
direção à bela estátua, e isso era tudo. Estava justamente escrevendo a
Clara, quando ouviu baterem suavemente à porta; a sua permissão, esta se
abriu e ele viu surgir o repugnante rosto de
Coppola.
Natanael sentiu um frêmito; mas levando em conta o que lhe disse
Spalanzani sobre seu compatriota Coppola e o que fervorosamente
prometera a sua bem-amada com relação ao Homem da Areia Coppelius,
envergonhou-se de seu ridículo medo de fantasmas, esforçou-se para se
controlar e falou tão suave e despreocupadamente quanto possível:
"Não
vou comprar nenhum barômetro, meu caro amigo, agora vá embora, por
favor!" Mas Coppola acabou entrando no quarto e disse num tom rouco,
contraindo a boca num horrendo sorriso e faiscando penetrantemente os
olhinhos sob as pestanas longas e grisalhas: "Ah, não, barômetro, não,
barômetro, não! Mas tenho olhos, belli occhi!" Chocado. Natanael gritou:
"Homem louco, como pode vender olhos? Olhos, olhos?" Mas nesse instante
Coppola havia posto de lado os seus barômetros. Botou a mão no bolso do
sobretudo
e tirou de lá lornhões e óculos, levando-os à mesa. "Aqui, aqui —
óculos, óculos para o nariz, meus olhos, belli occhi!" E sacava cada vez
mais óculos e lunetas que, entrecruzando-se, provocavam um brilho
ofuscante e estranho. Milhares de olhos olhavam e piscavam
convulsivamente, dardejando Natanael; mas este não conseguia desviar o
olhar da mesa, e Coppola continuava tirando cada vez mais óculos, e cada
vez com mais
voracidade olhares inflamadas
saltavam uns sobre os outros, atirando no peito de Natanael seus raios
vermelhos de sangue. Dominado por um terror delirante, ele gritou:
"Pare, pare com isso, homem terrível!" Agarrou então pelo braço Coppola,
que já enfiara a mão no bolso para pegar ainda mais óculos, embora toda
a mesa já estivesse coberta deles, mas este se livrou delicadamente com
um riso rouco e hostil, dizendo: "Ah! Nada para o senhor,
mas
aqui soberbas lentes." E já havia juntado todos os óculos, guardado e
tirado do bolso lateral do sobretudo uma grande quantidade de binóculos
grandes e pequenos.
Assim que os óculos
foram retirados. Natanael se acalmou e, pensando em Clara, reconheceu
que todas aquelas aparições eram fruto de seu cérebro, como também que
Coppola era um mecânico e óptico extremamente honesto e de forma alguma o
maldito sósia ou fantasma de Coppelius. Além disso, as lentes que
Coppola colocara sobre a mesa nada tinham de especial nem eram tão
fantasmagóricas como os óculos. Para remediar tudo aquilo. Natanael
decidiu, finalmente, comprar alguma coisa de Coppola. Pegou um pequeno
binóculo de bolso delicadamente trabalhado e, para experimentá-lo, olhou
pela janela. Nunca em sua vida vira uma lente que trouxesse aos olhos
os objetos de forma tão pura, límpida e nítida. Sem querer, olhou para o
quarto de Spalanzani; como de costume. Olímpia estava sentada diante da
mesinha, os braços esticados, as mãos cruzadas. Era a primeira vez que
Natanael contemplava o semblante de Olímpia, de maravilhosos traços.
Apenas os olhos pareciam-lhe estranhamente hirtos e mortos. Mas à medida
que a contemplava com mais cuidado, tinha a sensação de que dos olhos
de Olímpia saíam úmidos raios de luar. Parecia que só agora o seu poder
de visão fora estimulado; cada vez mais vivos flamejavam os seus
olhares. Natanael ficou à janela como que enfeitiçado, admirando sem
cessar a divina e bela Olímpia. Um pigarro despertou-o como de um sonho
profundo. Coppola estava atrás dele: "Ter zecchini, três ducados" —
Natanael esquecera o óptico por completo, e rapidamente pagou o exigido.
"Não ë uma bela lente? Bela lente!", disse Coppola com sua voz
repugnante e rouca e seu sorriso de escárnio. "Sim, sim, sim!",
respondeu Natanael, aborrecido. "Adeus, caro amigo!" Coppola deixou o
quarto, não sem antes dirigir muitos e estranhos olhares oblíquos para
Natanael, que ainda escutou sua gargalhada pela escada: "Pois é",
pensou, "ele ri de mim certamente porque paguei caro demais pelo pequeno
binóculo, caro demais!" Enquanto murmurava essas palavras,
aterrorizado, teve a impressão de ouvir espalhar-se pelo quarto um longo
estertor de moribundo. Mas havia sido ele mesmo quem suspirara, como
logo notou. "Clara tem toda a razão.” disse consigo, "em me considerar
um visionário idiota; no entanto ë estranho... é estranho que eu me
atormente tanto por ter pago caro demais pelo binóculo de Coppola; não
vejo razão para isso". Sentou-se então a fim de terminar a carta para
Clara, mas um olhar através da janela convenceu-o de que Olímpia ainda
estava lá; como se arrebatado por uma força irresistível, levantou-se,
pegou o binóculo de Coppola e não conseguiu esquivar-se da inebriante
visão de Olímpia, até que seu amigo e camarada Siegmund veio chamá-lo
para a aula com o professor Spalanzani.
A
cortina do quarto fatal dessa vez estava fechada, e ele não pôde ver
Olímpia nem naquele dia nem nos dois seguintes, embora quase não tenha
abandonado a janela, olhando ininterruptamente através do binóculo de
Coppola. No terceiro dia, até mesmo as cortinas das janelas foram
fechadas. Totalmente desesperado, devorado pela saudade e pelo desejo.
Natanael foi na direção dos portões da cidade. A imagem de Olímpia
flutuava a sua frente,
saía dos arbustos,
fitava-o com seus grandes e faiscantes olhos do espelho do riacho de
águas claras. A lembrança de Clara estava totalmente apagada de seu
espírito, só
pensava em Olímpia e lamentava
em voz alta e chorosa: "Será que você, minha esplêndida e distante
estrela de amor, será que você só me surgiu para eclipsar-se em seguida e
deixar-me na noite escura e sem esperanças?" Ao voltar para casa,
percebeu uma agitação ruidosa na casa de Spalanzani. As portas estavam
abertas, carregava-se para dentro toda espécie de
aparelhos;
as janelas do primeiro andar estavam levantadas; criadas circulavam
ocupadas com grandes vassouras de um lado para outro; escutavam-se as
batidas dos martelos dos marceneiros e dos tapeceiros. Natanael ficou
plantado na rua, estupefato. Siegmund aproximou-se sorrindo: "E então, o
que me diz do nosso velho Spalanzani?" Natanael respondeu que nada
podia dizer, pois nada sabia do professor e que, ao contrário, percebia
com
grande surpresa o furioso corre-corre e o tremendo burburinho numa casa
ormalmente calma e sombria. Siegmund informou-lhe então que Spalanzani
daria uma grande festa no dia seguinte, com concerto e baile, e que
metade da universidade estava convidada. Também se espalhara que
Spalanzani iria deixar aparecer pela primeira vez sua filha Olímpia, a
qual escondera por tanto tempo de todo e qualquer olhar. Natanael
encontrou em casa um convite, e à hora marcada para lá se dirigiu com o
coração palpitante, quando já chegavam as carruagens e as luzes
cintilavam nos salões decorados. A sociedade era numerosa e elegante.
Olímpia apareceu vestida ricamente e com muito bom gosto. Seu rosto e
seu corpo, de belas formas, foram inevitavelmente admirados. As costas
eram
curiosamente recurvadas, e a cintura
fina, semelhante à de uma vespa, parecia exageradamente apertada num
espartilho. Seu andar e sua postura pareciam ter algo de comedido e
rígido que a alguns era desagradável, o que foi atribuído a sua timidez
frente aos convidados. O concerto começou. Olímpia tocou piano com muita
habilidade e também cantou uma ária com uma voz límpida e quase
dilacerante, que tinha a sonoridade de um sino de cristal. Natanael
estava completamente deslumbrado; colocado numa das últimas
fileiras,
à luz das velas, não foi capaz de reconhecer imediatamente as feições
de Olímpia. Sem se fazer notar, tirou do bolso o binóculo de Coppola e
observou a bela cantora.
Ah! Agora poderia
perceber como ela o olhava com languidez e como seu olhar enternecido,
que penetrava e inflamava todo o seu ser, exprimia antecipadamente cada
nuance do seu canto. Seus trinados pareciam a Natanael o júbilo
celestial do espírito transformado pelo amor, e quando finalmente a
cadência do longo e último vocalise ressoou pelo salão, ele não pôde
mais se conter e, como se estrangulado por dois braços apaixonados,
exclamou extasiado: "Olímpia!" Todos se voltaram para ele, e muitos
começaram
a rir. O organista da catedral, porém, mostrou um rosto ainda mais
sinistro do que o habitual e disse apenas: "Bem, bem!" O concerto
chegara ao fim, começou o baile. "Dançar com ela, com ela!", era este o
objetivo de todos os seus sentidos de todos os seus esforços; mas como
criar coragem para convidá-la, ela, a rainha ia festa? Entretanto, sem
saber
como, mal a dança começara, já se encontrava junto a Olímpia, que ainda
não fora tirada, e, após balbuciar algumas palavras, pegou em sua mão. A
mão de Olímpia estava gelada, o que fez com que sentisse um arrepio
mortal. Fitou-a nos olhos, que só lhe transmitiam amor e desejo e,
naquele momento, foi como se as artérias de sua mão começassem a pulsar e
o sangue da vida corresse ardente por suas veias glaciais. Ardendo de
paixão. Natanael enlaçou a bela Olímpia pela cintura e deslizou com ela
por entre os pares do salão. Tinha a ilusão de ser um bom dançarino, mas
pela segurança rítmica
toda particular que
Olímpia demonstrava, fazendo com que diversas vezes se visse fora do
compasso, logo percebeu quanto lhe era estranho o verdadeiro sentido do
ritmo. Mesmo assim, renunciou a dançar com qualquer outra mulher; teria
inclusive desejado matar todo aquele que tentasse se aproximar de
Olímpia e a convidasse para dançar. Para seu espanto, isso ocorreu
apenas duas vezes, não lhe faltando a oportunidade de voltar a tirá-la.
Se
Natanael fosse capaz de se ocupar de outra coisa além da bela Olímpia,
então teria sido inevitável toda sorte de discussão e briga; pois
aparentemente as risadas discretas e a custo abafadas que se podiam
ouvir pelos cantos entre os jovens visavam à bela Olímpia, perseguida
por olhares curiosos, sem que se soubesse por quê. Entrementes, aquecido
pela dança e pelas copiosas libações. Natanael deixara de lado sua
timidez habitual. Sentado ao lado de Olímpia, as mãos dela entre as
suas, falava de seu amor com entusiasmo e vibração em termos inflamados
que ninguém poderia compreender, nem ele mesmo, nem Olímpia. Bem, talvez
ela entendesse, pois olhava-o fixamente, suspirando sem cessar: "Ah...
ah... ah!" Ao que Natanael respondia: "Ah, esplêndida mulher, exemplo do
amor que nos prometem na outra vida, espírito profundo no qual se
reflete todo o meu ser!", e outras coisas semelhantes, enquanto Olímpia
apenas suspirava repetidamente: "Ah... ah!" O professor Spalanzani
passou algumas vezes pelos felizardos e sorriu-lhes, singularmente
satisfeito. Embora estivesse num mundo diferente. Natanael pôde observar
que a casa do professor de repente havia escurecido; olhou em seu redor
e com enorme espanto percebeu que as duas últimas velas do salão vazio
ameaçavam se apagar. Fazia tempo que a música e a dança haviam
terminado. "Separação, separação", exclamou ele, em completo desespero, e
beijou a mão de Olímpia, que, inclinando-se sobre sua boca, tocou-a com
seus lábios frios como gelo! Assim como quando tocara as mãos frias de
Olímpia, viu-se penetrado por um profundo terror; repentinamente
lembrara-se da lenda da Noiva Morta; mas Olímpia o abraçara com ternura e
o ardor de seu beijo fazia com que seus lábios ganhassem vida. O
professor Spalanzani avançou com lentidão pelo salão, seus passos soaram
abafados, e sua silhueta, rodeada por sombras vacilantes, revelava uma
aparência assustadora, fantasmagórica. "Você me ama, você me ama.
Olímpia? Só uma palavra! Você me ama?", era assim que sussurrava
Natanael; Olímpia, levantando-se, apenas suspirou: "Ah... ah!" "Sim,
minha encantadora, esplêndida estrela do amor", prosseguiu Natanael,
"você surgiu em meu céu e iluminará para sempre o meu coração!" "Ah,
ah!", replicou Olímpia, afastando-se. Natanael seguiu-a e logo se
encontraram diante do professor. "O senhor conversou animadamente com
minha filha", disse este sorrindo. "Pois então, caro senhor Natanael, se
tem gosto em conversar com essa tímida rapariga, venha visitá-la com
freqüência."
Com todo um céu radioso no peito. Natanael se foi. A festa de
Spalanzani foi o assunto das conversas nos dias seguintes. Não obstante o
professor tivesse feito tudo para receber a todos com magnificência, as
pessoas mais atentas puseram-se a contar toda espécie de fatos
estranhos e singulares, falando principalmente da inerte e muda Olímpia,
a
quem se atribuía, a despeito da formosura, uma total estupidez. Viam
nisso a razão pela qual Spalanzani a mantinha isolada por tanto tempo.
Natanael ouvia tudo aquilo cultivando um furor secreto, mas se calava.
"Pois", pensava, "de que serviria provar a esses rapazes que é a sua
própria estupidez que os impede de reconhecer o espírito profundo e
magnífico de Olímpia?" "Irmão", disse um dia Siegmund. "por favor,
diga-me como você, um rapaz razoável, pôde perder a cabeça por aquele
rosto de cera, aquela boneca de madeira?"
Natanael fez menção de explodir, mas logo se recompôs e retrucou: "Diga-me você.
Siegmund.
como a seu olhar normalmente tão perspicaz pôde escapar o celestial
encanto de Olímpia? De resto, dou graças ao destino, pois de outra forma
teria um rival; e, nesse caso, um de nós haveria de verter
sangue."Siegmund logo percebeu o estado de seu amigo, esquivou-se
habilmente e acrescentou, depois de dizer que o objeto do amor nunca
deve ser julgado: "Mas é estranho que muitos de nós tenhamos mais ou
menos o mesmo julgamento sobre Olímpia. Não me leve a mal, irmão, mas
ela nos pareceu, de uma maneira muito estranha, rígida e sem alma. Seu
corpo é bemproporcionado, assim como seu rosto, é bem verdade! Poderia
ser considerada bonita, se o seu olhar não fosse desprovido de brilho,
eu diria quase de faculdade visual. Seu andar é particularmente
meticuloso, cada movimento
parece
condicionado por um mecanismo em que se deu corda. Seu jeito de tocar,
de cantar, tem o compasso desagradavelmente correto e sem espírito dos
realejos, e assim também é quando dança. Enfim, essa Olímpia causou-nos
uma impressão sinistra, e nada queremos com ela; é como se, apesar de
agir como um ser vivo, houvesse nela algo de singular e de equívoco.
Natanael absolutamente não se abandonou à sensação amarga que as
palavras de Siegmund lhe provocaram. Dominou sua raiva e apenas disse,
muito sério: "Talvez a vocês, pessoas friamente prosaicas. Olímpia possa
parecer sinistra. Apenas ao espírito poético revelam-se tais
personalidades! Só a mim ela dirigiu seu olhar apaixonado, irradiando
meus pensamentos, e só no amor de Olímpia posso reencontrar o meu ser.
Talvez não lhes agrade que ela não se prenda a conversas ligeiras, como
outros espíritos superficiais. Ela fala
pouco,
é verdade; mas essas poucas palavras, tais verdadeiros hieróglifos da
linguagem íntima da alma, revelam o amor e um elevado conhecimento da
vida espiritual na contemplação do eterno e misterioso além. Mas isso
está fora do alcance de vocês, tudo são palavras vãs." "Deus o proteja,
caro irmão", disse Siegmund com doçura, quase melancólico, "mas me
parece que você está no mau caminho. Você pode contar comigo, quando
tudo... Não, não vou dizer mais nada!" Para Natanael, foi como se
repentinamente o
prosaico e frio Siegmund
estivesse querendo o seu bem, por isso apertou com sinceridade a mão
estendida. Natanael esquecera por completo que existia uma Clara no
mundo, a quem
ele um dia amara; a mãe.
Lotar, todos haviam desaparecido de sua memória, e ele só vivia para
Olímpia, na casa de quem ficava diariamente horas a fio, devaneando
sobre seu amor, sobre o despertar de uma simpatia ardente, sobre as
afinidades de suas almas, e Olímpia ouvia tudo com a maior atenção. Das
profundezas de sua escrivaninha. Natanael tirava tudo o que já
escrevera. Poemas, fantasias, visões, romances, histórias, tudo
diariamente acrescido de toda sorte de sonetos, estâncias, cantigas, que
ele lia para Olímpia durante horas a fio, incansavelmente. Nunca tivera
uma ouvinte tão encantadora, pois não bordava nem tricotava, não olhava
pela janela, não dava comida aos pássaros e não brincava com cãezinhos
ou gatinhos graciosos. Não amassava papeizinhos ou se distraía com
qualquer coisa nas mãos, nem precisava conter um bocejo ou um leve
pigarro. Em suma, fitava o amado durante horas sem se mexer ou se
ajeitar, e esse olhar tornava-se cada vez
mais
ardente e mais vivo. Apenas quando Natanael se levantava no fim e lhe
beijava a mão e até mesmo a boca, ela dizia: "Ah, ah!, boa noite, meu
querido!"
"Oh, alma esplêndida e profunda",
exclamava Natanael em seu quarto, "somente você me compreende".
Estremecia de alegria ao pensar na maravilhosa relação que se
manifestava cada dia mais entre o seu espírito e o de Olímpia; pois para
ele era como se Olímpia exprimisse seus pensamentos sobre suas obras,
sobre seu talento poético exatamente como ele teria feito, como se a voz
dela soasse de seu próprio ser. Não poderia ser diferente, pois,
além
das palavras mencionadas. Olímpia não pronunciava mais nada. Mas quando
Natanael, em momentos claros e sóbrios, como por exemplo pela manhã, ao
acordar, lembrava-se da passividade total de Olímpia e de seu
laconismo, então dizia: "O que são palavras, palavras! A visão de seus
olhos celestiais diz mais do que todas as linguagens. Como poderia uma
criação dos céus nivelar-se ao estreito círculo traçado por nossa
necessidade ínfima e terrena?" O professor Spalanzani parecia muito
feliz com a relação de sua filha com Natanael; cumulava este com toda
sorte de nítidos sinais de simpatia, e
quando
Natanael fielmente ousou aludir a um possível casamento com Olímpia,
estampou um largo sorriso, dizendo que daria à filha a liberdade de
escolha. Encorajado por essas palavras, com um ardente desejo no
coração. Natanael decidiu, já no dia seguinte, suplicar a Olímpia que
lhe expressasse com clareza o que há muito o seu olhar encantador lhe
dissera, que seria sua para sempre. Procurou pelo anel que sua mãe lhe
presenteara na despedida, a
fim de ofertá-lo
a Olímpia como símbolo de sua dedicação e de sua iniciação a uma vida
que desabrochava e que ela fazia florescer. Naquele momento, as cartas
de Clara e de
Lotar lhe caíram às mãos, e
ele com indiferença repeliu-as; encontrou o anel, guardou-o e correu à
casa de Olímpia. Já na escada, no corredor, percebeu uma singular
agitação que parecia soar do gabinete de trabalho de Spalanzani.
Arrastar de pés, um estranho ruído,
batidas,
golpes contra a porta, em meio a maldições e imprecações. "Largue-a,
largue-a! — Infame, celerado! — Foi para isso que me dediquei de corpo e
alma? — Ha ha ha ha! — Não foi assim que combinamos — Eu, eu fiz os
olhos — E eu, o mecanismo — Aos diabos com o seu mecanismo — Cão
maldito, relojoeiro simplório — Vá embora — Demônio — Pare — Besta
diabólica! — Pare — Vá, charlatão!" Eram as vozes de Spalanzani e do
terrível
Coppola que vociferavam e bramiam confusamente. Natanael precipitou-se,
presa de uma angústia indefinível. O professor segurava uma figura
feminina pelos ombros, o italiano pelos pés, e esta era puxada e
arrastada de um lado para outro, os dois brigando furiosamente por sua
posse. Horrorizado. Natanael recuou ao reconhecer a figura de Olímpia.
Transportado por uma ira feroz, ia defender sua amada contra aqueles
possessos,
quando Coppola virou-se com uma força gigantesca e, arrancando o corpo
de Olímpia das mãos do professor, aplicou-lhe, com a própria mulher, um
terrível golpe na cabeça, de forma que este cambaleou e caiu de costas
sobre uma mesa cheia de retretas, tubos de ensaio, garrafas e cilindros
de vidro; tudo aquilo se partiu em mil cacos. Coppola lançou então a
figura nos ombros e correu pela escada gargalhando horrível e
estridentemente, fazendo com que os pés daquela miserável figura humana,
dependurados
desordenadamente, fossem
quicando pelos degraus, estalando como madeira. Natanael estava atônito —
com muita clareza pôde ver que o rosto de cera mortalmente pálido de
Olímpia era desprovido de olhos, cavidades negras ocupavam seu lugar;
era uma boneca inanimada. Spalanzani debatia-se no chão, os cacos de
vidro haviam cortado sua cabeça e dilacerado seu peito e seu braço, o
sangue jorrava como de um chafariz. Mas ele ainda encontrou forças:
"Atrás dele, atrás dele... — o que está esperando? — Coppelius...
Coppelius,
você me roubou o meu melhor autômato — trabalhei nele durante vinte
anos — dediquei-me de corpo e alma — o mecanismo — fala — anda — são
meus — os olhos, os olhos roubei de você — maldito — condenado — atrás
dele — traga-me Olímpia — aqui estão os olhos!" Natanael então percebeu
no chão um par de olhos ensangüentados fitando-o fixamente. Spalanzani
agarrou-os com a mão que não fora ferida e atirou-os em sua direção,
atingindo-o no peito. Foi então que a loucura arrebatou Natanael com
garras ardentes e penetrou em sua alma, dilacerando o que restava de seu
juízo e pensamento. "Roda de Fogo — Roda de Fogo! Gire, roda de fogo,
alegremente — alegremente! — Bonequinha de madeira, zum, bela bonequinha
de madeira, gire...", e com isso se lançou
sobre
o professor, apertando sua garganta. Tê-lo-ia estrangulado, se a
agitação não houvesse atraído muitas pessoas ao local, que entraram e
arrancaram dali o furioso Natanael, salvando assim o professor, que foi
imediatamente medicado. Siegmund. por mais forte que fosse, não
conseguia acalmar o enfurecido, que continuava a gritar com uma voz
aterrorizante: "Bonequinha de madeira, gire", dando golpes a seu redor
com os punhos cerrados. Finalmente, a força reunida de várias pessoas
conseguiu domá-lo, e foi jogado
ao chão e
amarrado. Suas palavras perderam-se pouco a pouco numa espécie de rugido
animalesco. Debatendo-se assim em terríveis convulsões, foi levado ao
manicômio.
Antes, caro leitor, que eu
continue a lhe contar o que sucedeu ao infeliz Natanael, posso
assegurar-lhe, caso se interesse pelo habilidoso mecânico e fabricante
de autômatos Spalanzani, que este ficou totalmente curado de suas
feridas. Entretanto, foi obrigado a abandonar a universidade, porque a
história de Natanael causara sensação, e todos consideraram uma burla
inadmissível introduzir em respeitáveis rodas da cidade (Olímpia as
freqüentara com sucesso) uma boneca de madeira no lugar de uma pessoa
viva. Juristas
consideraram-na uma fraude
refinada e passível de forte punição, já que praticada contra o público
de forma astuciosa. Ninguém, com exceção dos estudantes muito espertos,
percebera o golpe, embora agora todos se quisessem passar por
inteligentes e apontassem fatos que lhes teriam parecido suspeitos.
Estes últimos, porém, na verdade nada conseguiam relatar que fizesse
sentido.
A alguns, por exemplo, parecia
suspeito o fato de Olímpia, segundo um freqüentador das rodas de chá,
ter espirrado mais vezes que bocejado, o que contrariava os costumes. Em
primeiro lugar, dizia esse elegante, os espirros seriam os ruídos da
engrenagem oculta, que rangia nitidamente etc. O professor de poesia e
retórica aspirou uma pitada de rapé, fechou a tabaqueira, pigarreou de
leve e falou cerimoniosamente: "Mui honrados senhoras e
senhores!
Não notam onde está o fio da meada? Tudo isto ë uma alegoria — uma
metáfora ampliada! Os senhores me entendem: Sapienti sat!" Mas os mui
honrados senhores não se
tranqüilizaram com
aquilo, a história do autômato havia causado uma profunda impressão na
alma deles, e, de fato, cresceu sorrateiramente uma abominável
desconfiança com relação a figuras humanas. A fim de se convencerem por
completo de que não estariam amando uma boneca de madeira, vários
amantes exigiram que as amadas cantassem e dançassem um pouco fora do
ritmo, que, ao ouvirem uma leitura, bordassem, tricotassem e
brincassem
com o cãozinho etc., mas sobretudo que não apenas ouvissem e falassem
às vezes de uma maneira que as palavras demonstrassem o que realmente
pensavam e sentiam. As uniões amorosas de muitos tornaram-se mais
sólidas e gentis, outras, ao contrário, acabavam-se aos poucos. "Nunca
se pode saber com certeza", dizia um ou outro. Nas rodas de chá
bocejava-se incrivelmente, mas nunca se espirrava, para evitar qualquer
suspeita. Como dissemos. Spalanzani desapareceu para escapar da
investigação criminal relativa à introdução fraudulenta de autômatos na
sociedade. Coppola também desaparecera.
Natanael
despertou como de um sonho pesado e terrível; abriu os olhos e percebeu
que uma indescritível sensação de prazer o percorria com um calor suave
e celestial. Estava na casa de seus pais. Clara se havia inclinado
sobre ele, e não muito longe estavam a mãe e Lotar.
"Finalmente,
finalmente, meu amado Natanael; agora você está curado da grave doença;
agora você é meu novamente!", dizia Clara do fundo de sua alma, tomando
Natanael pelos braços. Lágrimas de alegria e de emoção saíam de seus
olhos, e ele disse, depois de um profundo suspiro: "Minha... minha
Clara!" Siegmund. que fielmente permanecera ao lado do amigo durante a
agonia, aproximou-se. Natanael estendeu-lhe a mão: "Meu fiel irmão, você
não me abandonou." Todo e qualquer sinal de loucura desaparecera, e
logo Natanael recuperou suas forças, graças aos cuidados da mãe, da
noiva e dos dois amigos. A felicidade voltara à casa; um velho tio
ranzinza, do qual ninguém nada esperara, morreu e deixou à mãe, além de
uma quantia não desprezível, uma pequena propriedade numa agradável
região não muito distante da cidade. Para lá queriam mudar-se a mãe.
Natanael e sua Clara, a qual agora queria desposar, e Lotar. Natanael
tornara-se mais carinhoso e mais amável do que nunca, e só então
reconheceu o espírito puro, divino e esplêndido de Clara.
Ninguém
fazia a menor alusão ao passado. Quando Siegmund se despediu dele.
Natanael disse-lhe apenas: "Por Deus, irmão! Eu estava no mau caminho,
mas na hora exata um anjo me conduziu pela trilha iluminada! E esse anjo
foi Clara!" Mas Siegmund não permitiu que continuasse, temendo que
recordações amargas e implacáveis pudessem renascer com brutalidade em
seu espírito. Chegara a época em que os quatro amigos iriam mudar-se
para a propriedade campestre. Ao meio-dia, caminhavam pelas ruas da
cidade. Haviam comprado algumas coisas e a alta torre da prefeitura
jogava sombras gigantescas sobre a praça do mercado. "Ah!", disse Clara,
"vamos subir lá mais uma vez e olhar para as montanhas ao longe!" Dito e
feito. Ambos. Natanael e Clara, subiram, a mãe foi com a criada para
casa e Lotar, sem vontade de galgar os numerosos degraus, preferiu
esperar embaixo. E lá estavam os dois namorados, de braços dados, na
mais alta galeria da torre,
olhando para as
profundezas dos bosques perfumados, atrás dos quais os picos das
montanhas azuis erguiam-se como uma cidade de gigantes. "Veja aquele
estranho arbusto cinzento, parece estar vindo em nossa direção", disse
Clara. Automaticamente. Natanael pôs a mão no bolso; achou o binóculo de
Coppola. Dirigiu-o para a planície... Clara estava diante das lentes!
Um estremecimento convulsivo percorreu suas veias e seu pulso. Pálido
como a morte, fitou-a fixamente... De repente os olhos dela, girando em
suas órbitas, expeliram raios de fogo; ele começou a uivar terrivelmente
como um animal acuado; começou então a saltar no ar e, entre
gargalhadas aterradoras, gritou estridentemente: "Bonequinha de madeira,
gire — bonequinha de madeira, gire", e com uma violência formidável
pegou Clara para precipitá-la lá de cima, mas ela, com um medo
desesperado da morte, agarrou-se com firmeza à balaustrada. Lotar ouviu o
alarido que fazia o furioso, distinguiu os gritos angustiados de Clara e
um terrível pressentimento apoderou-se de seu espírito. Correu para o
alto da torre: a porta da segunda escada estava trancada; os gritos de
Clara tornaram-se ainda mais dilacerantes. Louco de fúria e terror,
lançou-se contra a porta, que finalmente se abriu. Os gritos de Clara
soavam cada vez mais fracos: "Socorro — ajudem-me, ajudem-me...", e a
voz desapareceu no ar. "Ela morreu assassinada pelo louco! ", exclamou
Lotar. A porta do terraço também estava trancada. O desespero
incutiu-lhe uma força sobre-humana, e ele se jogou contra a porta,
arrombando-a finalmente. Clara, erguida pelo furibundo Natanael, pairava
no ar, do lado de fora da balaustrada; apenas com uma das mãos ainda se
agarrava às grades de ferro. Rápido como um raio. Lotar pegou a irmã,
atirou-a sobre a plataforma e no mesmo instante deu um soco no alucinado
com os punhos cerrados, de forma que este cambaleou, soltando sua presa
de morte. Lotar desceu correndo com a irmã desfalecida nos braços. Ela
estava salva. Natanael corria pelo terraço, saltava no ar e gritava:
"Roda de fogo, gire — roda de fogo, gire." Com essa gritaria selvagem,
as pessoas acorreram, dentre elas o advogado Coppelius, que acabava de
chegar à cidade, estando a caminho do mercado. As pessoas queriam subir e
dominar o louco furioso. Coppelius pôs-se a rir, dizendo: "Esperem, que
logo ele vai descer sozinho", e, como os outros, olhou para cima.
Subitamente. Natanael parou como que petrificado; então se debruçou,
percebeu a presença de Coppelius e, com um grito: "Ah, bonitos olhos —
belli occhi", saltou por sobre a balaustrada. Enquanto Natanael, com a
cabeça estraçalhada, jazia no chão. Coppelius havia desaparecido na
multidão.
Muitos anos depois. Clara foi
vista numa região remota, de mãos dadas com um simpático homem e diante
de uma bonita casa de campo, com duas saudáveis crianças brincando a seu
lado. Daí pode-se concluir que Clara finalmente encontrou a tranqüila
felicidade doméstica, adequada a seu espírito sereno e alegre.
Felicidade que o exaltado e impetuoso Natanael nunca lhe teria
oferecido.
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