A Vida e os Jogos das Almas Condenadas

"Nada deve ser guardado" - repetia à si mesmo em pensamento, enquanto suas palavras saíam de sua boca como vômito: um fluxo ininterrupto de um líquido amargo e espesso que o sufocava, lhe privava a respiração, mas que ele não podia mais manter dentro de si. Precisava jogar fora todo aquele mal, precisava se livrar de toda a podridão que estava em seu corpo.
Sabia que ao deixar aquilo sair ele melhoraria, era algo necessário, apesar da agonia que sentia. Não tinha mais escolha, não podia mais carregar tudo aquilo.

Sua revolta e dor vieram de um misto de sentimento de impotência, inutilidade, covardia e medo. Não conseguia acreditar que fora tão ingênuo, não aceitava que tivesse sido tão cego.
A adaga fora retirada de seu peito, mas seu coração ainda bate (com dificuldade), teme que suas feridas jamais parem de sangrar.
Isso deveria mesmo acontecer? Não sabia o motivo, não conseguia entender o motivo...
Seu esforço, atenção e afeto não foram suficientes? Prazer? Ego? Sociopatia? O que? Mas ele já desistiu de perguntar, desistiu de saber, nunca entenderá.

Em seu quarto, entre as negras paredes que o confortavam, pensava, titubeava, calculava. Odiava perder o controle, sentia que apesar das muitas máscaras que possuía, nenhuma seria a ideal. Rostos imóveis e vazios que o encaravam, pendurados em paredes. Órbitas oculares sem vida e sem movimento que penetravam em sua alma como agulhas. Sua palidez contrastava-se com a umbra daquele ambiente. Pontos esbranquiçados em meio às trevas.
Não possuía espelhos em seu quarto, sempre odiou o fato de ver o que havia se tornado ao longo dos anos, sempre sentiu ódio por aquele recipiente que estava fadado a carregar sua mente, sua alma e seu espírito.

No chão havia um rosto quebrado. Sim, seu rosto. Estava sem máscaras nos últimos dias, mas não se arrependeu pela dor que sentiu. A dor é necessária para nos manter vivos, é preciso sentir o sangue jorrar para se querer viver. As feridas têm que doer, as marcas e cicatrizes têm que ficar, ele precisa delas para refletir.

Reflexões... Tantas vezes o fez... Se lembra de seu passado agora.
Estudava as atitudes e vidas humanas como quem estuda insetos. Não se importava com o que acontecia com eles, desde que suas metas sejam cumpridas. Tudo era motivo de estudo, tudo era um grande jogo. Sempre foi.
Sabia como era o vazio no peito, sabia muito bem como era a busca incessante e desesperada para supri-lo de alguma forma, seja ela qual for. Sempre jogou com as pessoas, eram todas peças no seu grande tabuleiro de Go. Peças facilmente substituíveis, todas com o mesmo valor, utilizadas e descartadas para alcançar seu objetivo.

Mas dessa vez, sentiu todo o poder e peso das ironias que a vida usa para nos ensinar. Se viu como um peão em um tabuleiro de Xadrez. Talvez até uma peça importante, pois no Go não há peça melhor ou pior, diferentemente desse novo jogo em que se viu.

Primeiro sentiu a dor e abraçou-a. Depois veio o arrependimento, pois sabia que poderia ter sido evitado. Mas quando pensava em desistir de tudo, largar tudo e voltar ao seu antigo jogo, voltou. O que ele sentia era mais forte que a dor que o consumia, apesar de sua vida de manipulações, conseguiu perdoar o fato de ter sido manipulado, foi capaz de dar uma última e única demonstração de confiança. Apesar de tudo, esteja ele cego ou não, acredita nas mudanças.

"Não há mais nada oculto" repete a si mesmo, não há e jamais haverá o "crime perfeito". E a vida sempre nos mostra que tudo, sem exceção, terá um retorno um dia. Ele teve o seu, assim como tantos outras também o tiveram. Não guarda rancor, não guarda ódio, não guarda sentimentos baixos (Se é que tais coisas podem ser consideradas sentimentos de fato).
Mas o cristal que um dia fora liso, transparente e vivo, jaz cheio de rachaduras e remendos. Nunca mais voltará a ser como antes. Entretanto, seu otimismo infelizmente, ou felizmente, o diz que ainda pode-se conseguir outro cristal, mais vivo e transparente que o outro, que ainda há tempo de se moldar algo novo e, não digo livre de falhas, pois falhar é algo tão comum quanto respirar, mas livre de segredos, pois todos os que haviam não mais o são.

Tem em mente que de agora em diante o jeito é dar valor ao que se tem, traçar novos planos e costurar de vez aquele tecido que fora rasgado, pois há uma navalha extremamente afiada encostada no tênue fio que restou.

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